A execução do acto administrativo
1. O Projecto de Revisão do Código do Procedimento Administrativo (1) sob apreciação constitui um trabalho extenso, minucioso, e naturalmente meritório, que pretende fazer eco de grandes contributos doutrinários e jurisprudenciais que longamente se foram acumulando sobre o CPA, fruto do labor paciente dos juristas, mas também de práticos do quotidiano que o testam constantemente, devolvendo aos primeiros questões tantas vezes dilemáticas, mas em todo o caso pertinentes porque testadas na experiência real da vida. Trata-se de um Projecto também ambicioso, que não deixa intocado praticamente nenhum artigo do CPA, mas, sobretudo, porque em múltiplos aspectos pretende alterações paradigmáticas: não se desviou desse propósito a comissão revisora no que respeita à execução do acto administrativo.
É sobre esse aspecto do Projecto que se debruça este brevíssimo comentário.
2. O CPA consagra nos seus artigos 149.º e seguintes uma “regra geral” ou conjunto de regras gerais relativas à execução do acto administrativo, a partir das quais boa parte da doutrina nacional afirma ainda a existência de uma figura geral de autotutela executiva da administração pública, que consiste no uso da força por parte da administração, para a efectivação das suas próprias decisões, sem prévia habilitação judicial (2).
Muito embora seja questionável que estejamos efectivamente perante um princípio geral, não há dúvida de que o legislador do CPA pretendeu estabelecer uma habilitação genérica para toda a administração de pública no domínio da execução de actos administrativos cujas determinações não sejam cumpridas pelos destinatários, conforme resulta claramente do disposto no art. 149.º, n.º 2, do CPA: “O cumprimento das obrigações e o respeito pelas limitações que derivam de um acto administrativo podem ser impostos coercivamente pela Administração sem recurso prévio aos tribunais, desde que a imposição seja feita pelas formas e nos termos previstos no presente Código [esta última referência aos “termos previstos no presente Código” resultante da alteração de 1996] ou admitidos por lei”.
Na sequência de tal habilitação, o regime da execução do acto administrativo previsto no CPA divide-se em dois grandes grupos normativos:
i. Normas respeitantes à legalidade da execução e procedimentais gerais, aplicáveis às diferentes formas de execução previstas no próprio Código, e, bem assim, supletivamente a procedimentos executivos disciplinados em legislação especial (arts. 150.º a 153.º);
ii. Normas respeitantes a três formas de execução de actos administrativos, correspondentes aos fins da execucação enunciados no art. 154.º, de acordo com o tipo de prestação cujo cumprimento é reclamado: pagamento de quantia certa (art. 155.º), entrega de coisa certa (art. 156.º), e prestação de facto (art. 157.º).
3. O Projecto pretende uma alteração de paradigma a respeito da habilitação genérica da administração pública para a execução de actos administrativos, podendo dizer-se que, desse ponto de vista, as restantes alterações estruturais são, em geral, lógicas.
De acordo com o Projecto, o “regime comum” da execução do acto administrativo encontrar-se-ia agora entre os arts. 175.º e 181.º do CPA. O art. 175.º, n.º 1, (“Objecto”) afirma que nas disposições subsequentes se regula o “regime comum aplicável aos procedimentos administrativos dirigidos à obtenção, através de meios coercivos, da satisfação de obrigações e do respeito por limitações decorrentes de actos administrativos”. Deixando por ora de parte o n.º 2 (que apela a legislação própria para a adopção de “medidas policiais”), vem então assentar o art. 176.º, n.º 1, que “A satisfação de obrigações e o respeito por limitações decorrentes de actos administrativos só podem ser impostos coercivamente pela Administração nos casos e segundo as formas e termos expressamente previstos na lei” (ressalvando-se “situações de extrema urgência”, nos termos do n.º 2 – cfr. infra).
Há semelhança com o disposto no art. 149.º, n.º 2, do CPA, mas apenas aparente, sobretudo numa leitura sistemática da secção que integra estas normas. Com efeito:
i. As “formas e termos expressamente previstos na lei” são, desde logo, as constantes do CPA, rectius, do Projecto: mas uma vez que, das formas ainda previstas no Código, o Projecto pretende que apenas subsista a execução de obrigações pecuniárias (“para pagamento de quantia certa”), sendo eliminadas as restantes (execução para entrega de coisa certa e execução para prestação de facto), apenas para esta que subsiste se pode falar em habilitação genérica
ii. Por outro lado, a desnecessidade de recurso prévio aos tribunais constante do art. 149.º, n.º 2, do CPA, desaparece com o Projecto, dando lugar a uma norma substancialmente oposta: pois de acordo com o art. 181.º, “Sempre que, nos termos do presente Código e demais legislação aplicável, a satisfação de obrigações ou o reispeito por limitações decorrentes de actos administrativos não possa ser imposto coercivamente pela Administração, ela deve solicitar a respectiva execução ao tribunal administrativo competente, nos termos do disposto na lei processual administrativa”.
Ora, tendo em conta que o único caso para o qual o Projecto mantém uma habilitação genérica de execução do acto administrativo, em situações de normalidade, é o justamente aquele em que já se considerava não estarmos em presença de uma manifestação de autotutela executiva, por se tratar de um procedimento no essencial jurisdicionalizado – a exeucação para pagamento de quantia certa ou de obrigações pecuniárias, como diz o Projecto -, a conclusão é clara: o Projecto de Revisão do CPA pretende acabar com a autotutela executiva da administração pública. Esta subsistirá apenas (i) quando prevista em legislação extravagante, já não especial, mas verdadeiramente excepcional, e (ii) em “situações de extrema necessidade”, cuja autonomia relativamente ao estado de necessidade administrativo não se alcança (mas que parece imperioso buscar, ante a manutenção de referência diferenciada a este último, no art. 177.º, n.º 2, do Projecto).
De um ponto de vista estrutural, o regime da execução do acto administrativo agora projectado, dividiria esta secção do CPA nos seguintes grandes grupos normativos:
i. Normas respeitantes à legalidade da execução e procedimentais gerais, aplicáveis à única forma de execução prevista no próprio Código, e, bem assim, supletivamente a procedimentos executivos disciplinados em legislação especial (arts. 175.º a 178.º);
ii. Uma única norma forma geral de execução de actos administrativos habilitada pelo Código: a execução de obrigações pecuniárias (art. 179.º);
iii. Uma norma respeitante a garantias dos executados, essencialmente de pendor contencioso (art. 180.º), que poderia ter agregado ou aproximado sistematicamente o disposto em matéria de “princípios aplicáveis” (art. 178.º);
iv. E uma norma estabelecendo a regra geral de obtenção de uma habilitação judicial para a execução de actos administrativos (art. 181.º).
4. Que pensar deste pretenso “golpe de misericórdia” geral na autotutela executiva da administração? Sem dúvida alguma, ele é motivado por preocupações garantísticas com os direitos fundamentais dos cidadãos. Mas, se como a própria exposição preambular de motivos explicita, se trata “de opção sustentada ao longo dos últimos trinta anos por uma parte muito significativa da doutrina”, seria apressado – talvez mesmo um “atalho” – considerar que aquela outra parte da doutrina que sustenta a bondade jurídico-política da autotutela executiva da administração pública o faz por outras razões que não essas mesmas. Por outras palavras, a solução do Projecto corresponde a uma certa “visão” da administração; e o poder político, tendo legitimidade para a adoptar, deve estar bem ciente disso, desde logo para que a sua mens não se desvie imediatamente para regimes excepcionais ainda enquanto considera a adesão ao Projecto.
Em termos de fundo, deve considerar-se que a administração pública tem por vocação a concretização de soluções politicamente pretendidas e vazadas na lei: ela é, embora não apenas, um instrumento do político, querendo com isso dizer-se que concretiza opções políticas quanto do “modo de vida em e da comunidade”, conformação essa para a qual a lei lhe concede também uma inevitável margem de criatividade, que se manifesta na iniciativa. Tal não aconselha uma intervenção geral legitimadora por parte dos tribunais, que não têm uma vocação político-criativa, mas antes jurídico-conservadora. Sem querer entrar a discutir o problema do fundamento da autotutela executiva da administração – o que já noutro lugar fiz (3), talvez em exagerada extensão, mas que é discussão que, com o Projecto em apreço, mais hoje do que ontem se justifica -, diga-se que a alteração de paradigma que o Projecto pretende ao nível da execução de actos administrativos constitui um “combustível altamente inflamável” na discussão sobre a politização da função judicial.
Note-se que, nos sistemas da família aglo-americana, tradicionalmente apelidados de administração judiciária por contraste com os de administração executiva - a presença hoje em dia de manifestações de autotutela executiva não é propriamente menor que entre nós. Inexiste mesmo, habitualmente, uma regra como a constante do art. 181.º do Projecto, mas contrastando com o crescimento exponencial de regimes excepcionais autorizativos de actuações da administração em autotutela executiva (por exemplo, habilitando à entrada em propriedade privada para defesa de animais em risco em virtude de maus tratos); alguns desses regimes limitando mesmo a judicial review da actuação administrativa empreendida. Recordo a este propósito o famoso caso Steel Seizure, no qual se assistiu à invalidação, por parte do Supremo Tribunal Federal, de uma executive order do Presidente Truman que determinava a apropriação e gestão pública temporária de fábricas de aço, simplesmente com base na ausência de uma autorização do Congresso, o que é bem demonstrativo de que o problema central da autotutela executiva está na relação entre legislador e administração, mais que na relação entre administração e poder judicial (descontada a questão da sustação da autotutela executiva)(4).
Eliminando-se a regra geral de autotutela executiva actualmente constante do CPA, a administração pública é despojada de uma forma de actuar (tendencialmente) unilateral que (i) não a coloca ab initio na dependência do poder judicial, e que (ii) é (tendencialmente) mais lesta. Do ponto de vista do sistema do ordenamento jurídico português, parece haver uma aproximação ou paritarização de posições entre a administração e os cidadãos. Mas o que se ganha com tudo isso? Algumas reflexões, tentando evitar uma abordagem excessivamente teórica:
i. Em primeiro lugar, parece colocar-se o cidadão a salvo de actuações autoritárias unilaterais da administração pública, sobretudo em situações que seriam de execução para entrega de coisa certa ou para prestação de facto; porém:
a. Uma boa parte de tais actuações encontra habilitação em normas inscritas noutros diplomas legais que não o CPA, que não são objecto de revisão, permanecendo intocadas: se sempre se poderia dizer então que a alteração do CPA neste domínio não seria tão relevante quanto isso, certamente assim se aumentaria o apetite do legislador por normas (agora) excepcionais, pois as situações da vida que os poderes de autotutela executiva normalmente afectam continuarão carentes de actuação (e não parece – seria até incongruente com o Projecto – que esteja no horizonte uma solução semelhante à alemã, com a criação de um regime geral de execução de actos administrativos distinto do Código; o mesmo já não se poderá dizer a respeito da hipótese de uma lei disciplinadora da chamada coacção directa, como na Alemanha, à qual o art. 175.º, n.º 2, do Projecto parece abrir a porta);
b. O mesmo é dizer que apenas em sede de regime geral ficaria este “golpe” na autotutela executiva da administração, sempre passível de convivência com regime excepcionais;
ii. Além disso, a solução geral do Projecto implica uma intervenção judicial autorizativa do uso da força por parte da administração, caso a caso, que não deixa de suscitar múltiplos problemas:
a. Desde logo, um aumento da pendência judicial nos tribunais administrativos, que, podendo não ser um aspecto absolutamente decisivo (designadamente, ante a possibilidade de alterações na organização judiciária da jurisdição administrativa e fiscal), é certamente um aspecto a ter em conta (e que vem sendo tido em conta em várias reformas legislativas);
b. Mas esta necessidade de intervenção judicial habilitante coloca questões a respeito do juízo judicial propriamente dito:
i. Qual a forma de processo?
ii. Atendendo à configuração do princípio da separação de poderes no nosso ordenamento jurídico, que apreciação estará ao alcance do juiz administrativo? Poderá ela ir além do controlo formal dos pressupostos da execução, ou pelo contrário poderá entrar na apreciação da legalidade substantiva do acto exequendo (o que implica transpor para este momento toda a discussão existente – e não pacífica – sobre os poderes de apreciação do juiz administrativo relativamente à resolução fundamentada de grave prejudicialidade para o interesse público no não prosseguimento da execução, no âmbito das providências cautelares de suspensão de eficácia de acto administrativo (5))?
iii. Uma vez que a regra geral, à luz do Projecto, passa a ser a da necessidade de habilitação judicial da execução, quando esta seja conferida, ainda assim poderão os executados “requerer a suspensão contenciosa dos respectivos efeitos”, ao abrigo do art. 180.º, n.º 1?
iv. E em caso de resposta negativa à questão anterior, poderão lançar mão de outras providências cautelares, nos termos do n.º 3 do mesmo art. 180.º?
iii. Ainda uma observação, que expressamente admitimos ser “a benefício de inventário”. Aparentemente, olhando os poderes de conformação da relação contratual do contraente público disciplinada no Código dos Contratos Públicos (CCP), maxime, nos seus arts. 307.º a 309.º, parece que na forma contratual da actividade administrativa aquele estará mais intensamente munido de poderes de autotutela executiva do que na forma unilateral do acto administrativo. A ser assim, poderemos ter:
b. Do ponto de vista dos particulares, uma preferência por formas unilaterais de actuação administrativa, em detrimento de formais contratuais, uma vez que agora, com o Projecto, a administração deixa de conseguir vencer unilateralmente a resistência imposta pela esfera jurídica dos cidadãos sem habilitação judicial;
c. Do ponto de vista da administração, justamente o inverso: uma preferência por formas contratuais de actuação administrativa, não em razão das vantagens jurídicas da bilateralidade, mas, ao invés, em razão das vantagens jurídicas da unilateralidade na conformação da relação contratual;
d. Em suma, talvez venhamos a assistir a uma recuperação – teórica, porque na prática ele não se perdeu – do acto administrativo, paralelamente a um incremento da importância prática do contrato público, na perspectiva da administração pública (isto mesmo parece ainda favorecido pelos arts. 198.º e seguintes do Projecto, designadamente do art. 198.º, n.º 3, que reintegra no CPA a regra do seu antigo art. 179.º, que passara para o art. 278.º do CCP; bem como o art. 200.º, n.º 1, com a remissão para o regime substantivo dos contratos previsto no CCP).
5. Ainda algumas notas específicas a respeito do articulado do Projecto:
i. Da conjugação disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 176.º, resulta que em “situações de extrema urgência”, que deve ser “devidamente fundamentada”, a “execução coerciva de obrigações impostas em estrita aplicação de determinações contidas em comandos normativos” pode ter lugar sem observância das formas e em casos não expressamente previstos na lei. Ora, pergunta-se:
a. Qual a autonomia da figura da extrema urgência face ao estado de necessidade administrativo, que encontra ainda previsão no art. 177.º, n.º 2, do Projecto, sobretudo considerando que aquela parece ter um âmbito de permissão mas vasto do que este (pois ali não está em causa apenas a dispensa de uma decisão autónoma exequenda prévia, como aqui)? São diferentes os pressupostos face ao estado de necessidade? E são eles – como pareceria lógico – mais exigentes?
b. Por outro lado, a expressão estrita aplicação de determinações contidas em comandos normativos é uma fonte de problemas interpretativos, desde logo porque é no mínimo questionável que tal exista, numa ordem jurídica eivada de antinomias, princípios jurídicos carentes de ponderação harmonizadora, e conflitos de deveres. É muito provável que, em termos práticos, a aplicação desta norma encontre entrave difícil de superar, pois o agente administrativo – ou aquele que lhe ordena certa actuação – dificilmente estará seguro da verificação desta última condição de actuar, o que tem peso considerável para efeitos de responsabilidade, de acordo com o art. 271.º da CRP, e com o regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.
iii. O Projecto elimina também o disposto no art. 152.º, n.º 2, do CPA, de acordo com o qual a notificação da execução pode ser feita conjuntamente com a do acto exequendo. Sendo certo que o art. 177.º, n.º 3, do Projecto, designadamente, não parece afastar terminantemente essa possibilidade, a solução do CPA é mais consentânea com uma actividade administrativa cada vez mais massificada, e mesmo com o princípio de boa administração que o Projecto faz entrar no seu art. 5.º.
iv. Esta teria sido também uma boa oportunidade para dissipar dúvidas de constitucionalidade que legitimamente se colocam a respeito do art. 157.º, n.º 3, do CPA, por carência de densidade normativa, no domínio da execução para prestação de facto infungível. Mas o Projecto limita-se a dispor, no art. 178.º, n.º 2 (depois do princípio da proporcionalidade inscrito no n.º 1, dispensável em face da sua consagração geral no art. 7.º, mas nem por isso criticável) que “A coacção directa sobre indivíduos só pode ser exercida com observância dos direitos fundamentais e no respeito pela dignidade da pessoa humana”, o que nada acrescenta face ao actualmente disposto no CPA e que suscita aquelas dúvidas de constitucionalidade. É certo que o art. 175.º, n.º 2, apela a legislação especial, como vimos: mas é também certo que nem todas as medidas de coacção directa são medidas de polícia – ou assim o pretende o Projecto? -, como certo parece ser também que, nesse caso, teria então sido preferível eliminar definitivamente esta norma.
v. Uma nota ainda a respeito do projecto de autorização legislativa, que nos é dada a conhecer com o Projecto de revusão do CPA: do meu ponto de vista, limitando-se a mesma a autorizar o Governo a “Alterar o regime substantivo do ato administrativo, designadamente em matéria de cláusulas acessórias, eficácia, invalidade, execução, instituindo-se as figuras da revogação e anulação administrativas e respetivos condicionalismos” (art. 2.º, al. t)), ela não cumpre os requisitos mínimos quanto ao sentido e extensão que a CRP exige como elementos essenciais de toda a autorização legislativa. Na verdade, sendo evidente que o legislador governamental pretende uma autorização para alterar um regime vigente, tal norma não é mais do que uma especificação do objecto – outro elemento da autorização -, deixando-a totalmente carente de sentido e extensão, o que é tanto mais problemático quanto as autorizações legislativas que antecederam a aprovação inicial do CPA e sua revisão em 1996 já padeciam elas mesmas de complexos e conhecidos problemas, designadamente no domínio da execução do acto administrativo (mas talvez menos graves do que agora)(6).
Em conclusão:
Saudando a Comissão Revisora por um trabalho aturado, cientificamente apurado, e orientado para as garantias dos direitos fundamentais dos cidadãos, julgo que, no domínio da execução do acto administrativo, outros caminhos seriam mais profícuos face a tais objectivos, designadamente:
i. Regulando com densidade normativa suficiente – isto é, constitucionalmente adequada - a execução das decisões administrativas, em lugar de eliminar normas de habilitação;
ii. Nesse âmbito, distinguindo entre órgãos da administração e de pessoas colectivas associadas ao exercício da função administrativa para efeitos da titularidade de poderes de autotutela executiva (fará sentido um mesmo regime para o Governo, para entidades administrativas independentes, e para um concessionário de serviços públicos, por exemplo? (7));
iii. E protegendo os direitos dos cidadãos em sede de execução logo a partir do regime da invalidade do acto administrativo, maxime, dos casos de nulidade. Sem entrar neste tópico, que não me pertence, há que não desconsiderar que uma boa parte da actividade executiva da administração tem lugar através de acto jurídico – acto administrativo – que vence por si mesmo a resistência da esfera jurídica dos cidadãos, actos esses que alcançam “por si e em si” a finalidade pretendida pela administração, efectivando eles mesmos a pretensão administrativa (pois não se limitam à fixação de deveres, que é o típico da autotutela declarativa). Perante isso, como noutro lugar também já avancei (8), o direito de resistência dos cidadãos, direito fundamental constitucionalmente consagrado, torna-se praticamente inoperante, prestando então o regime da invalidade do acto administrativo um contributo garantístico insuperável. Aqui, sim, deveria haver uma aproximação ao CCP, que prevê a nulidade de contratos administrativos por violação de princípios gerais da actividade administrativa (art. 284.º, n.º 2).
Porque o problema não é a autotutela da administração: é o cidadão ser “mal tratado” nos seus direitos pela administração, sendo a solução regular juridicamente, e não simplesmente eliminar instrumentos jurídicos que têm uma função importante da vida em colectividade.
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Doravante, utilizar-se-á simplesmente a expressão “Projecto”. E a abreviatura “CPA” para nos referirmos ao Código do Procedimento Administrativo em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro (que entrou em vigor seis meses após a data da publicação), e revisto pelo Decreto-Lei n.º 6/96, de 31 de Janeiro.
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Cfr. Rui Guerra da Fonseca, O Fundamento da Autotutela Executiva da Administração Pública, Almedina, Coimbra, 2012, p. 315.
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Cfr. Rui Guerra da Fonseca, O Fundamento da Autotutela Executiva ..., passim.
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No caso Steel Seizure o leading case é o Youngstown Sheet & Tube Co. v Sawyer, 343 U.S. 579 (1952) (cfr. John H. Garvey / T. Alexander Aleinikoff / Daniel A. Farber, Modern Constitutional Theory: A Reader, 5.ª Ed., Thomson-West, 2004, pp. 390 ss.). A história do caso é a seguinte. Para obviar a uma greve nacional de trabalhadores da indústria do aço, crendo que isso punha em causa a estratégia de defesa nacional, o Presidente Truman, em 8 de Abril de 1952, emitiu a Executive Order 10340, ordenando ao Secretário do Comércio a apreensão e passagem à gestão / operação directa da maior parte das fábricas de aço nos EUA. Tal ordem não especificava a existência de qualquer statutory authorization (do Congresso), invocando apenas genericamente os poderes investidos no Presidente pela Constituição e pelas leis americanas. O Secretério do Comércio Sawyer procedeu em conformidade, ordenando aos gerentes / administradores das ditas fábricas que actuassem como gestores públicos dos EUA, de acordo com as suas directivas. O Presidente dirigiu-se imediatamente ao Congresso, reconhecendo o respectivo poder de se sobrepor à sua Executive Order, mas o Congresso recusou imediatamente qualquer actuação, como o recusou uma quinzena depois, após insistência do Presidente, como já anteriormente se havia recusado a legitimar a posteriori intervenções similares noutros casos. As companhias do aço tomaram então acção judicial nos tribunais federais contra o Secretário do Comércio (declaratoty judgment and injunctive relief), que veio a terminar no Supremo Tribunal Federal com a referida decisão. Como dizem os Autores referidos supra, a moral da história era clara: que the escape from “presidential autocracy” devia ser procurada com recurso, não ao poder judicial, mas ao poder legislativo, ou, por outras palavras, recorrendo a acções em tempo junto do Congresso e a procedimentos adequados a situações de emergência, tanto quanto as mesmas podem ser intelligently anticipated (cfr. p. 395). Para uma análise detalhada das várias implicações do caso, cfr. Laurence H. Tribe, American Constitutional Law, I, 3.ª Ed., Foundation Press, Nova Iorque, 2000, maxime pp. 203 ss., 633 ss. e 764 ss.; na perspectiva da compreensão de “modelos” constitucionais não escritos, Idem, The Invisible Constitution, Oxford University Press, Oxford / Nova Iorque, 2008, pp. 159-160. Para um enquadramento da relevância do caso Steel Seizure, cfr. Rui Guerra da Fonseca, O Fundamento da Autotutela Executiva ..., pp. 527 ss. e 612 ss.
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Cfr. Rui Guerra da Fonseca, O Fundamento da Autotutela Executiva ..., pp. 759 ss.
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Cfr. Rui Guerra da Fonseca, O Fundamento da Autotutela Executiva ..., pp. 750 ss.
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Cfr. Rui Guerra da Fonseca, O Fundamento da Autotutela Executiva ..., pp. 727 ss. e 744 ss.
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Cfr. Rui Guerra da Fonseca, O Fundamento da Autotutela Executiva ..., pp. 787 ss.