O projecto de revisão do CPA: breves notas, muito tópicas, entre a satisfação e o espanto

Prof.ª Doutora Carla Amado Gomes | Dom, 17/11/2013 - 18:38

 

No passado dia 15 de Julho de 2013, o Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa promoveu um colóquio sobre o projecto de revisão do Código do Procedimento Administrativo, coordenado pelo Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva e pela Profª Doutora Alexandra Leitão, no qual tive oportunidade de intervir. Privilegiando a pluralidade de opiniões, cada orador dispunha apenas de 10 minutos para abordar questões dentro de um conjunto temático específico. No meu caso, o painel abrangia o âmbito de aplicação, a relação jurídica procedimental e as fases do procedimento. O texto que ora se publica foi escrito nessa lógica de dupla contenção.

Aproveito para agradecer aos organizadores o convite que me endereçaram e para louvar a oportunidade da iniciativa.
 

 

a) Uma satisfação (e algumas reticências): a legitimidade procedimental (artigo 64º); b) Um espanto: a prescindibilidade de pareceres vinculantes (artigo 89º/4 e 5); c) Uma (nova) satisfação (e algumas interrogações): o artigo 126º/5

O CPA ― aprovado pelo DL 442/91, de 15 de Novembro ― vigora desde 1992 e foi alterado apenas uma vez (pelo DL 6/96, de 31 de Janeiro). Estando-se em presença de uma lei geral da actividade administrativa, a estabilidade constitui um valor a preservar; porém, a parca referência ao procedimento de elaboração e aprovação de regulamentos teria desde logo justificado uma revisão nesse ponto, que não se verificou[1]. Subsequentemente, a entrada em vigor da nova legislação processual administrativa, em Janeiro de 2004, introduziu, entre outras, perturbações no plano da relação entre as impugnações administrativas e contenciosas. Alterações na prática administrativa, como a simplificação e a automação pediam referência mais ou menos detalhada, bem assim como as crescentemente complexas relações interprocedimentais entre Administração nacional e entidades da União Europeia. Enfim, evoluções jurisprudenciais e propostas doutrinais aconselhavam uma revisão, que agora se corporiza no Projecto apresentado pela Comissão revisora.

Não é nossa intenção fazer uma apreciação geral do esforço de revisão, que se contém numa lógica de continuidade estrutural e visa, sobretudo, uma actualização das soluções do Código, por razões práticas e teóricas. Não podemos, no entanto, deixar de manifestar o nosso espanto perante o “alargamento” da noção de procedimento à “organização interna das entidades administrativas”, promovida pelo artigo 1º/1/a) do Projecto ― o procedimento pressupõe, para nós, alteridade e composição de interesses divergentes[2].

Isto dito, passemos às observações tópicas sobre três disposições do Projecto, em sede de relação jurídica procedimental: a primeira, relativa à legitimidade procedimental (artigo 64º); a segunda, que se prende com pareceres vinculantes (artigo 84º/4 e 5); e, finalmente, a terceira, que diz respeito à extinção do procedimento, por caducidade (artigo 126º/5).

 

a) Uma satisfação (e algumas reticências): a legitimidade procedimental (artigo 64º)

O artigo 64º, na sequência do artigo 61º (que apresenta os sujeitos da relação jurídica procedimental), traça com precisão a diferença entre os vários interesses presentes no procedimento: primo, interesses individuais qua tale (nº 1, 1ª parte); secundo, interesses individuais defendidos colectivamente e interesses colectivos qua tale (v.g., uma associação de utentes representando um grupo de associados especialmente afectados pelo ruído dos veículos transitando numa autoestrada e solicitando a colocação de barreiras de protecção nesse troço, no primeiro caso; a mesma associação, defendendo o direito à utilização livre de portagens naquela autoestrada, no segundo caso) (nº 1, 2ª parte); tertio, interesses difusos (nº 2); quarto, interesses relacionados com a tutela de bens de titularidade pública (nº 3).

O confronto desta norma com o actual artigo 53º demonstra uma preocupação de maior rigor no desenho dos vários tipos de intervenção procedimental, esclarecendo, por um lado, que uma coisa são lesões individualizadas em bens jurídicos pessoais e outra, bem diversa, lesões não individualizadas em bens de fruição colectiva, inapropriáveis e de utilidades indivisíveis. Por outro lado, a norma alarga, no nº 3, a possibilidade de tutela procedimental a bens públicos não necessariamente integrantes do domínio público. Tendo em consideração a continuidade possível entre tutela procedimental e tutela processual, e a articulação entre a norma atributiva de legitimidade em ambos os planos, parece-nos de saudar esta “afinação” dos termos, que aproxima o CPA da norma “gémea” do CPTA, nomeadamente e em sede geral, o artigo 9º/2 deste último diploma. Restará então rever a Lei 83/95, de 31 de Agosto, que regula a “acção popular”…

As reticências que o artigo 64º nos suscita são duas: por um lado, uma questão “terminológica”, que se prende com o facto de a epígrafe referir “particulares” e de o conteúdo abranger expressamente autarquias locais, e eventualmente associações públicas (como ordens profissionais)[3]; por outro lado, uma questão substantiva, relativa à circunscrição da legitimidade procedimental para defesa de interesses difusos aos “cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos” [nº 2, alínea a)], solução por nós contestada há vários anos[4], em razão da natureza dos interesses em jogo e desmentida, de resto, pela Lei 107/2001, de 8 de Setembro (Lei de bases do património cultural), no seu artigo 25º/1[5].

 

b) Um espanto: a prescindibilidade de pareceres vinculantes (artigo 89º/4 e 5)

O actual artigo 99º/3 do CPA estabelece que a não emissão de parecer obrigatório mas não vinculativo não impede a conclusão do procedimento, admitindo-se que a decisão seja proferida sem o parecer, salvo previsão diversa em lei especial. Esta norma, que amputa o procedimento de um momento ponderativo específico, privilegia a celeridade sobre a imparcialidade (ponderação de todos os interesses relevantes à justa composição da decisão), de forma questionável mas não intolerável, dado que o parecer não é vinculante. O CPA, na sua versão actual, é, todavia, omisso quanto ao problema de saber o que sucede ao procedimento caso o parecer vinculante (e, concomitantemente, obrigatório) não seja emitido.

O Projecto, no artigo 84º/4 e 5, vem dar uma resposta a esta indagação ― avançando uma solução que nos causa grande perplexidade. As normas identificadas viabilizam o prosseguimento de um procedimento no qual falhe um parecer vinculante, introduzindo um mecanismo pretensamente corrector, que passa pela “interpelação” do órgão responsável pela instrução ao órgão consultivo, em 10 dias após a verificação da omissão, dispondo este órgão de outros 10 dias para colmatar a sua falha a qual, no entanto, pode não ser efectivamente suprida. Ou seja, a decisão final, que nestes casos é parcial ou mesmo totalmente tributária da ponderação especializada expendida no parecer ― por isso este é vinculativo ―, vai surgir amputada dessas considerações. Por outras palavras ainda, e apelando a uma contextualização dentro do próprio artigo 89º, a decisão não será devidamente fundamentada, nem poderá concluir de modo expresso e claro sobre as questões fundamentais que conforma (nº 1).

Esta solução, que é extensível aos casos de pareceres não vinculantes (cfr. o artigo 66º/4), conduz a um resultado manifestamente ilegal. Com efeito, a preterição de um parecer vinculativo gera inapelavelmente violação de lei, por afronta ao princípio da imparcialidade (consagrado no actual artigo 5º do CPA, além de inscrito no artigo 266º/2 da CRP), além de vício de forma, por preterição de formalidade essencial. Nas palavras de Mário Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e João Pacheco de Amorim, em anotação ao actual artigo 99º/3, “A decisão proferida sem o parecer vinculativo (ou contra ele) é, obviamente, inválida”[6].

A “interpelação” do órgão consultivo é de louvar ― mas pode resultar inócua[7]. Para atalhar à falta do parecer obrigatório, parece-nos que melhor teria andado o legislador se, para além do convite intra-administrativo à acção e após a constatação do seu insucesso:

- tivesse, no âmbito dos pareceres obrigatórios não vinculativos, consagrado a possibilidade de os interessados fornecerem o parecer em falta, por recurso a entidades privadas, num prazo idêntico ao concedido à entidade consultiva, durante o qual o procedimento ficaria suspenso[8]. Esta solução só valeria para pareceres eminentemente técnicos e pressupõe a notificação dos interessados da omissão do parecer. Caso os interessados não accionassem este mecanismo (em tempo), então a decisão poderia ser emitida sem o parecer ― não se livrando, todavia, da possibilidade de sindicância por fundamentação deficiente;

- tivesse, no âmbito dos pareceres obrigatórios vinculativos, previsto a possibilidade de os interessados accionarem o órgão consultivo faltoso através da intimação prevista nos artigos 104º a 108º do CPTA, a fim de obterem do tribunal uma condenação daquele na emissão do parecer em falta. Esta solução pressupõe, naturalmente, a notificação dos interessados da omissão do parecer, bem como a assimilação do parecer vinculante a uma informação a que o interessado tem direito. O procedimento suspender-se-ia até cumprimento da sentença, podendo o tribunal condenar o órgão consultivo em sanção pecuniária compulsória por atraso[9].

A notificação dos interessados, decisiva para os casos de omissão, também deveria consagrar-se em caso de emissão do parecer, sempre que este seja vinculativo. Note-se que a natureza destes pareceres traduz a produção de uma decisão complexa, no contexto da qual o órgão consultivo é, na realidade, autor (ou co-autor, se o parecer incidir sobre parte da ponderação essencial à decisão), absorvendo o parecer os fundamentos da decisão e constituindo, por isso, uma “pré-decisão”, potencialmente lesiva dos interesses dos sujeitos participantes no procedimento, sejam eles os destinatários da decisão ou (contra-)interessados na sua não emissão em determinado sentido. Tal notificação permitiria aos interessados a impugnação do parecer, num prazo curto (um mês, à semelhança do previsto em sede de actos praticados em sede de procedimento pré-contratual: cfr. o artigo 101º do CPTA) e através de um processo sumário (e urgente[10]), cuja instauração poderia suspender o procedimento até prolacção da sentença[11]. Sublinhamos que a condição de procedibilidade de tal pedido deve residir na demonstração de um interesse processual qualificado, uma vez que o parecer corporiza um acto endoprocedimental apenas potencialmente lesivo.

Pedro GONÇALVES, em artigo anterior à reforma da legislação processual administrativa, admitia que o parecer vinculativo, mesmo quando consubstanciasse um acto externo (leia-se: emanado de um órgão de uma pessoa colectiva diversa da detentora da competência decisória), não poderia sustentar um interesse processual actual na sua impugnação por parte do destinatário da decisão final ― mas, em contrapartida, poderia ser objecto de impugnação pelo órgão decisor, caso dele divergisse, suscitando tal impugnação a prolacção de uma decisão prejudicial que faria suspender o procedimento administrativo[12]. Salvo o devido respeito, afastamo-nos tanto das premissas do Autor ― a lesividade do parecer não se prende, quanto a nós, com a sua externalidade em face do órgão decisor mas antes com a sua funcionalidade específica, fruto de uma competência especializada, ainda que emanada de um órgão consultivo integrante da mesma pessoa colectiva em que se integra o órgão decisor ―, como dos resultados ― não se tratará, em regra, de um conflito interorgânico mas de um procedimento complexo tendente à emissão de um acto pré-conformado, que apenas ao destinatário interessará travar, só ele tendo, assim, legitimidade (nos termos enfatizados) para o impugnar “preventivamente”.

O interesse do órgão decisor na impugnação do parecer reside, inquestionavelmente, na tentativa de evitação de emissão de um acto ilícito que o pode comprometer em sede de responsabilidade civil extracontratual (nos termos do regime aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro). Cremos, no entanto, que no actual contexto legislativo do processo administrativo, caso o órgão decisor não logre, através de canais intra-administrativos (numa espécie de “respeitosa representação” despida das vestes da relação hierárquica), convencer o órgão consultivo da necessidade de alteração do parecer em razão da sua ilegalidade, das duas, uma: - ou a prática do acto redunda em ilegalidade grosseira e potencialmente geradora de dano grave para o particular, e o órgão decisor deve abster-se da homologação do parecer, forçando o interessado a propor acção condenatória na emissão do acto, no âmbito da qual o órgão consultivo poderá expender as razões justificativas da sua inércia; - ou a homologação do parecer pode, aos olhos do órgão decisor, gerar uma ilicitude não grosseira, devendo nesse caso praticar o acto e defender-se em eventual acção de efectivação da responsabilidade invocando como causa de exclusão da sua responsabilidade o cumprimento de um dever legal[13].

Caso opte pela homologação, em acção de efectivação de responsabilidade convirá demonstrar as suas diligências intraprocedimentais a fim de caracterizar a discordância com o parecer que, por força da vinculatividade legal, foi forçado a homologar.

Não devendo as normas indicadas interpretar-se como viabilizando a emissão de decisão final em procedimento que inclua parecer vinculativo omitido ― apesar de o nº 4 expressamente o afirmar… ―, por tal solução ser manifestamente ilegal e contraproducente, que sentido útil delas poderemos extrair? Julgamos que o legislador se terá inspirado na lei italiana do procedimento administrativo (legge 241/1990, de 7 agosto, com alterações até ao Decreto legislativo nº 33, de 14 de Março de 2013), cujo artigo 16º/2, 2ª parte dispõe o seguinte:
“Salvo il caso di omessa richiesta del parere, il responsabile del procedimento non può essere chiamato a rispondere degli eventuali danni derivanti dalla mancata espressione dei pareri di cui al presente comma”.

Trata-se de uma fórmula que permite ao gestor do procedimento/responsável pela instrução eximir-se da responsabilidade por omissão de pareceres (tanto obrigatórios como facultativos, mas não vinculativos) através da solicitação da sua emissão ― ainda que esta solicitação fique sem resposta. Poderia ser esta a intenção do Projecto, sendo certo que tal isenção só fará sentido em caso de pareceres não vinculativos uma vez que, quando vinculativos, como se explicou acima, ou não caberá homologação em razão da gravidade do ilícito ou esta poderá dar-se, cabendo ao órgão decisor, em caso de demanda judicial por dano, invocar o cumprimento de um dever legal como causa de exclusão da ilicitude.

 

c) Uma (nova) satisfação (e algumas interrogações): o artigo 126º/5

O CPA consagra, no artigo 9º (13º do Projecto), o direito à decisão – expressão da autotutela declarativa e primeira missão da Administração, na sua tarefa genérica de prossecução do interesse público. A decisão a que o CPA se refere é uma decisão jurídica e procedimentalizada, cujo prazo de produção será, em regra, de 90 dias, prorrogáveis, no máximo, por igual período (cfr. o artigo 58º/1 e 2 do CPA).

Com o nº 5 do artigo 126º do Projecto vem desdobrar-se este direito numa vertente para a qual já havíamos chamado a atenção[14]: o direito a não permanecer em indecisão. Como sublinhámos em texto anterior, com o dobre a finados do indeferimento tácito (em razão da possibilidade de condenação da Administração à prática do acto devido: cfr. o artigo 67º/1/a) do CPTA), a ausência de uma disposição sobre a caducidade do procedimento do CPA abria a porta a uma situação de inércia prolongada (teoricamente, ad eternum….), mesmo após o esgotamento dos prazos máximos para que aponta o artigo 58º do CPA. O artigo 126º/5 vem, precisamente, estabelecer os termos dessa caducidade.

Refira-se que a norma sobre indeferimento tácito foi, coerentemente com a solução de condenação prevista no CPTA, suprimida do Projecto, encontrando-se agora, em seu lugar, uma norma sobre o incumprimento do dever de decidir (o artigo 127º). Além desta norma, existe uma previsão, meramente remissiva, para a hipótese de deferimento tácito ― a inserir em leis especiais ―, e que estabelece a solução do silêncio endoprocedimental positivo para actos cuja prática dependa de autorização ou cuja produção de efeitos externos pressuponha uma aprovação (artigo 128º). A utilidade desta norma resume-se, assim, ao nº 3, sendo no restante puramente ilustrativa da figura do acto tácito positivo. Tendo em conta a expansão do deferimento tácito nos últimos anos, não nos choca que a figura, enquanto tal, encontre referência na lei procedimental geral. O que nos provoca alguma estranheza, contudo, é que se não tenha aproveitado para inserir, identicamente a título ilustrativo, outras noções que enxameiam os novos regimes autorizativos conformados pelas alterações decorrentes da Directiva serviços (directiva 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro), como a comunicação prévia e a declaração de início de actividade. Nesta última, a verdade é que já estamos perante “desadministrativização”, ou seja, tendencial ausência de procedimento administrativo; porém, seria importante esclarecer se há domínios excepcionados da solução (a legge procedimental italiana exclui vários: cfr. o artigo 19º/1), bem assim estatuir sobre pressupostos negativos de conformação do direito, como falsas declarações ou atestados, que devem motivar a emissão de actos de proibição de exercício da actividade (cfr. a legge procedimental italiana, nos artigos 19º/3 e 21º).

A norma artigo 126º/5 do Projecto segue os passos da congénere espanhola[15], e assenta numa dupla bipolarização:

> procedimentos de iniciativa oficiosa e externa (só se aplica aos primeiros)[16];

> procedimentos conducentes à adopção de um acto desfavorável ao destinatário e procedimentos conducentes à adopção de um acto favorável ao destinatário (só se aplica aos primeiros)[17].

Olhamos com satisfação para esta solução; todavia, a novidade da figura da caducidade do procedimento e a ambiguidade da norma do Projecto vão certamente suscitar interrogações, como por exemplo:

i) havendo contra-interessados na emissão do acto (desfavorável ao destinatário), deve entender-se que, no termo do prazo de caducidade do procedimento, podem propor acção para a condenação à prática de acto devido? Julgamos que deve admitir-se esta solução, nos termos dos artigos 67º/1 e 69º/1 do CPTA, ou seja, até ao limite do prazo de um ano após o término do prazo de conclusão do procedimento;

ii) sendo afirmativa a resposta à questão anterior, isso significa que a Administração pode emitir o acto para além do prazo de caducidade? A nossa resposta é afirmativa, pelo menos sempre que a sindicância judicial for accionada, ou seja, na pendência do processo e até ao trânsito em julgado da sentença (com base numa lógica de ultra-actividade da competência, por preferência pela decisão administrativa do procedimento em face da decisão jurisdicional). Porém, na ausência de propositura da acção, deve entender-se que o ano concedido pelo CPTA implica uma extensão da competência decisória?

Uma hipótese seria entender que a Administração, se praticar o acto oficiosamente para além dos 180 dias, e sem que esteja pendente um processo judicial, agirá com incompetência em razão do tempo; caso pratique o acto a solicitação de qualquer interessado, dentro do prazo de um ano, o vício já se não verificaria, pois o resultado seria idêntico ao que decorreria de um processo judicial. Esta solução, todavia, é claramente insatisfatória, pois não deve deixar-se variar a validade do exercício da competência em razão da existência ou inexistência de uma iniciativa externa. Donde, a norma parece fixar, na verdade, dois prazos de caducidade: 180 dias, primeiro; um ano, depois – findos os quais haverá definitivamente incompetência em razão do tempo.

Para que serve, então, o primeiro prazo? Aparentemente, apenas para os procedimentos bilaterais…;

iii) deve entender-se, da letra do artigo 126º/5, que só há actos desfavoráveis gerados a partir de procedimentos de iniciativa oficiosa? Cremos que não, uma vez que o impulso procedimental pode ser promovido por um “contra-interessado” que pretende a emissão de um acto desfavorável dirigido, por exemplo, a um concorrente.

A ser assim, pode aplicar-se a norma a estes casos? Julgamos que sim, com a possibilidade de accionar a Administração através da acção administrativa especial, de condenação à prática de acto devido, por parte de quem teve a iniciativa procedimental, em caso de ausência de decisão; e, em contrapartida, admitindo a hipótese de accionar a Administração através de uma acção administrativa comum, para condenação na emissão da declaração de caducidade do procedimento, por parte dos potenciais lesados.

Aceitando esta “extensão”, sublinha-se que deverão então ter-se em consideração as normas ínsitas nos artigos 129º (renúncia) e 130º (deserção);

iv) reconhecendo que a caducidade também se aplica a procedimentos de iniciativa externa, havendo razões de interesse público que justifiquem o prosseguimento do procedimento e a tomada de decisão, a desistência, a renúncia ou a deserção do interessado farão caducar o procedimento (cfr. os artigos 129º e 120º do Projecto)? Pensamos que sim, devendo, contudo, entender-se que o prazo recomeça a contar desde o momento em que a Administração decide prosseguir com a tramitação, passando então o procedimento “novado” a ser “adoptivamente” oficioso[18].

 

Lisboa, Julho de 2013

 

Carla Amado Gomes

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

  • ft1

    Tendo-se tentado colmatar a falha através da Lei 83/95, de 31 de Agosto, cujo capítulo II é dedicado à participação popular na elaboração de planos e decisões de localização e depois, mais extensamente mas circunscrito aos instrumentos de gestão territorial, com o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial (DL 380/99, de 22 de Setembro).

  • ft2

    É esta vocação de composição de interesses que, independentemente das diferentes finalidades que o procedimento perseguiu, e diversos figurinos que vestiu, ao longo dos mais de dois séculos de existência do Direito Administrativo, caracteriza a metodologia “procedimento administrativo”: cfr. Javier BARNES, Tres generaciones de procedimiento administrativo, in Innovación y reforma en el Derecho Administrativo, coord. de Javier Barnes, 2ª ed., Sevilha, 2012, pp. 339 segs.

  • ft3

    A lei italiana do procedimento administrativo (legge 241/1990, de 7 agosto, com alterações até ao Decreto legislativo nº 33, de 14 de Março de 2013) resolveu o problema através da noção de participação no procedimento (de que o nosso legislador também lançou mão, mas apenas para título das Secções II e III do do Cap. II da Parte III), e de uma norma lapidar (artigo 9º), que aqui se reproduz:
    “1. Qualunque soggetto, portatore di interessi pubblici o privati, nonché i portatori di interessi diffusi costituiti in associazioni o comitati, cui possa derivare un pregiudizio dal provvedimento, hanno facoltà di intervenire nel procedimento”.

  • ft4

    Carla AMADO GOMES, D. Quixote, cidadão do mundo: da apoliticidade da legitimidade popular para defesa de interesses transindividuais, Anotação ao Acórdão do STA, I, de 13 de Janeiro de 2005, in CJA, nº 53, 2005, pp. 46 segs.

  • ft5

    O qual atribui legitimidade procedimental a estrangeiros, ou seja, sujeitos que, em regra, não gozam de direitos políticos em Portugal.

  • ft6

    Código do Procedimento Administrativo, Anotado, 2ª ed., Coimbra, 1997, p. 448.

  • ft7

    A legge italiana do procedimento administrativo admite que a omissão de pareceres técnicos possa ser suprida através de consultas a outros órgãos consultivos com funções idênticas (“equivalentes”), ou mesmo a departamentos universitários, a solicitação do gestor do procedimento ― salvo em domínios como o ambiente, o património cultural e a saúde pública (artigo 17º).

  • ft8

    Pense-se na solução acolhida pelo RJUE (DL 555/99, de 16 de Dezembro, com última alteração introduzida pela Lei 28/2010, de 2 de Setembro: Regime Jurídico da Urbanização e Edificação), cujo artigo 9º/7 admite que o requerente peça indicação, no momento em que inicia o procedimento, das entidades que intervêm neste para conceder autorizações, aprovações, ou emitir pareceres, informação que lhe propicia a possibilidade de se municiar previamente daqueles elementos, prevenindo omissões ou atrasos (cfr. o artigo 13º B/1 do RJUE).

  • ft9

    Cfr. artigo 42º/5/c) da Ley procedimental espanhola, que prevê uma suspensão de até três meses do procedimento em caso de falta de emissão de um parecer vinculante. Os interessados devem ser informados, quer do pedido do parecer, quer da sua não emissão no prazo legal. Veja-se também o artigo 83º/3 da mesma Ley (sublinhado nosso):
    “3. De no emitirse el informe en el plazo señalado, y sin perjuicio de la responsabilidad en que incurra el responsable de la demora, se podrán prosseguir las actuaciones cualquiera que sea el carácter del informe solicitado, excepto en los supuestos de informes preceptivos que sean determinantes para la resolución del procedimiento, en cuyo caso se podrá interrumpir el plazo de los trámites sucessivos”.

  • ft10

    Que admitimos poder concretizar-se através da impugnação urgente de actos pré-contratuais, adaptativamente.

  • ft11

    Caso se não optasse por esta solução, o procedimento poderia continuar e, uma vez concluído e emitida a decisão final, o autor poderia lançar mão do mecanismo de ampliação do objecto do processo, previsto no artigo 102º/4 do CPTA (por remissão para o regime do artigo 63º do CPTA).

  • ft12

    Pedro GONÇALVES, Apontamento sobre a função e a natureza dos pareceres vinculantes, in CJA, nº 0, 1996, pp. 3 segs, pág. 11 e notas 16 e 17.

  • ft13

    Sobre esta causa de exclusão da responsabilidade civil extracontratual da Administração, Paulo OTERO, Causas de exclusão da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública por facto ilícito, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Manuel Sérvulo Correia, II, Coimbra, 2010, pp. 965 segs, 972-973 (não mencionando esta hipótese mas falando em actos de adopção vinculada).

  • ft14

    No nosso Repensar o Código do Procedimento Administrativo: a decisão do procedimento, in CJA, nº 82, 2010, pp. 32 segs.

  • ft15

    Cfr. o artigo 44º/2 da Ley 30/92, de 26 de noviembre, de Régimen Jurídico de las Administraciones Públicas y del Procedimiento Administrativo Común (na redacção dada pela Ley 4/1999, de 13 de enero). Sublinhe-se que, no artigo 42º/5, este diploma configura uma solução mais completa para a questão da caducidade, incluindo hipóteses como a da extensão dos prazos por articulação com instituições da União Europeia, ou por necessidade de realizar perícias técnicas.

  • ft16

    Precise-se que, na lei procedimental espanhola, o legislador aplica a caducidade quer a procedimentos de iniciativa externa (cfr. o artigo 92º), quer interna/oficiosos (neste caso, só àqueles que redundariam “en que la Administración ejercite potestades sancionadoras o, en general, de intervención, susceptibles de producir efectos desfavorables o de gravamen”, ficando os restantes sujeitos à regra do indeferimento tácito; veja-se também o artigo 8º/IV do Código modelo de processos administrativos – judicial e extrajudicial – para a Ibero-América, aprovado pela Assembleia Geral do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual por ocasião das XXIII Jornadas Ibero-Americanas de Direito Processual, que tiveram lugar em Buenos Aires, a 8 de Junho de 2012 ― disponível em http://ssnr.com/abstract=2250818).

  • ft17

    A norma fala em interessados, mas julgamos que se pretenderia dizer destinatários…

  • ft18

    A lei espanhola resolve esta questão de modo diverso, prevendo a não aplicação da caducidade nestes casos, o que nos parece desnecessário (cfr. o artigo 92º/4).