Análise do Projecto de Revisão do CPA relativamente ao regime para os Contratos da Administração Pública

Prof. Doutor Lourenço Vilhena de Freitas | Qua, 05/02/2014 - 10:04

 

Lourenço Vilhena de Freitas
Professor da Faculdade de Direito de Lisboa, Doutor em Direito, Advogado

1. Relativamente ao regime preconizado pelo Projecto de Revisão de Código de Procedimento Administrativo para os contratos da administração pública (Capítulo III), importa destacar cinco aspectos fundamentais.

2. Primeiro, a manutenção da distinção entre contratos administrativos (sujeitos a um regime substantivo de direito administrativo) e contratos submetidos a um regime de direito privado. Mantém-se neste particular a tradição portuguesa nesta matéria, tradição legislativa consolidada no Código do Procedimento Administrativo, que distinguia contrato administrativo de contrato de direito privado (pela negativa, na medida em que definia contrato administrativo e estabelecia o seu regime), parcialmente infirmada no ETAF de 2002-2004 com a sujeição à jurisdição administrativa dos contratos privados precedidos de um procedimento pré-contratual público, mas logo reconfirmada no artigo 1.º, n.º 6 do Código dos Contratos Públicos; mas também tradição jurisprudencial e doutrinal (assim Magalhães Colaço, Melo Machado, Marques Guedes, Marcelo Caetano, Freitas do Amaral, Sérvulo Correia, Marcelo Rebelo de Sousa (numa primeira fase do seu pensamento), Orlando de Carvalho, Paz Ferreira, Pamplona Corte Real, Ferreira de Almeida) entre muitos outros, sem que, contudo, existissem posições divergentes, das quais se destaca Maria João Estorninho, tendencialmente acompanhada em certo momento por Vasco Pereira da Silva e João Caupers e em parte por Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos), sustentando a proximidade entre o contrato administrativo e o contrato de direito privado da administração, referindo-se preferencialmente a níveis de administratividade.

Mas, independentemente de se pender para a separação entre as figuras contrato administrativo e contrato de direito privado da Administração, posição que se sustentou em obras anteriores, a verdade é que na esteira do aresto do Tribunal de Justiça Pressetext, e como bem tem notado Maria João Estorninho, a separação entre contrato de direito privado e contrato administrativo não é mais possível, pelo menos em parte, dado que a existência de um procedimento pré-contratual público, condiciona, por imposição do Direito da União Europeia, certos aspectos da execução dos contratos de direito privado da Administração.

Assim ocorre em matéria de limites à modificação objectiva (modificação unilateral) e à modificação subjectiva (cessão da posição contratual) em homenagem e de forma a não subverter o princípio da concorrência. Ou seja, existem contratos que, mesmo que sejam qualificados como contratos de direito privado da Administração a nível do direito nacional, não podem deixar de ser sujeitos parcialmente a um regime de execução sujeito a limitações de interesse público, isto é, a um regime parcialmente administrativo.

Essa especificidade, que resulta do Direito da União Europeia, deveria, a nosso ver ter tido tradução em sede de Projecto de Revisão de Código de Procedimento Administrativo, que em vez de adoptar a dicotomia – contrato administrativo/contrato de direito privado, deveria ter criado um regime intermédio e específico para os contratos de direito privado parcialmente sujeitos a um regime de direito administrativo.

Não é, contudo, esse o caminho do Projecto de Revisão do Código de Procedimento Administrativo, cujo artigo 200.º, n.º 2, dispõe apenas que “[n]o âmbito dos contratos sujeitos a um regime de direito privado são aplicáveis aos órgãos da Administração Pública as disposições deste Código que concretizam preceitos constitucionais e os princípios gerais da atividade administrativa.” (no que reitera o que resulta do n.º 4 do artigo 2.º quando se dispõe que “as disposições deste Código que concretizam preceitos constitucionais e os princípios gerais da actividade administrativa são aplicáveis a toda e qualquer actuação da Administração Pública, ainda que meramente técnica ou de gestão privada”. É duvidoso que destas disposições possam resultar todas as limitações impostas pelo acórdão Presstext e pelos novos projectos de Directiva em matéria de contratação pública, tanto mais que o artigo 199.º, n.º 2, do Projecto de Revisão do Código de Procedimento Administrativo especialmente refira que “à formação dos contratos a que se refere o número anterior são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência”, sem menção paralela no artigo 200.º ao princípio da concorrência.

Releve-se, contudo, que a separação entre as figuras contratuais era mandato do qual o Projecto de Revisão do Código de Procedimento Administrativo não se pode afastar, por constar da alínea v) do artigo 2.º da Proposta de Lei de Autorização Legislativa (a manter-se sem alteração) o seguinte “Definir o regime geral dos contratos administrativos celebrados pelos órgãos da Administração Pública, incluindo os contratos sujeitos a um regime de direito privado”, embora fosse possível modelar o regime dos contratos de direito privado, sem criar uma terceira figura, de forma a acomodar as preocupações relativas à necessidade de sujeitar a execução desses contratos, parcialmente, a regimes de direito administrativo.

3. Segundo aspecto que merece destaque é o facto de os contratos administrativos continuarem a não ser objecto de uma definição geral. Com efeito, no CPA os contratos administrativos eram definidos em função da constituição, modificação ou extinção de uma relação jurídico administrativa (artigo 178.º, n.º 1), para além da existência de um elenco exemplificativo dos mesmos no n.º 2 do referido artigo 178.º do CPA. O CCP deixou de contemplar uma definição expressa de contrato administrativo, embora parte da doutrina, v.g. Diogo Freitas do Amaral e Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos considerem que se continua a aplicar a definição anterior. Por outro lado, do CCP deixou ainda de constar, para parte da doutrina, um elenco dos contratos administrativos. Alguns autores (Diogo Freitas do Amaral e Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos) pretendem vislumbrar esse elenco na Parte III do CCP, em conjugação com o n.º 6 do artigo 1.º do mesmo Código, na medida em que o referido dispositivo legal qualifica como contratos administrativos os contratos sujeitos a um regime de direito público, considerando, portanto, que tais contratos estão sujeitos ao referido regime de direito público. A nosso ver, a Parte III do CCP só é aplicável aos contratos aí indicados que revistam, por direito próprio, a natureza de contrato administrativo, isto é, que preencham os restantes critérios do n.º 6 do artigo 1.º do mesmo CCP. Tal significa que o CCP não consagrou um elenco exemplificativo de contratos administrativos, e que o CPA não aproveitou o ensejo legislativo para reintroduzir esse elenco que corresponde à tradição histórica portuguesa (embora oscilando entre elenco taxativo e elenco exemplificativo).

Ao invés, o Projecto de Revisão de Código de Procedimento Administrativo remeteu apenas no n.º 2 do artigo 198.º para os contratos “que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos, ou em legislação especial”.

4. Terceiro aspecto, o Projecto de Revisão de Código de Procedimento Administrativo manteve a ideia clássica no ordenamento jurídico-administrativo português de que “na prossecução das suas atribuições ou dos seus fins, os órgãos da Administração Pública podem celebrar quaisquer contratos administrativos salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer.” (artigo 198.º, n.º 3). Trata-se de posição defendida por Sérvulo Correia na tese de doutoramento e que foi consagrada no CPA, mantendo-se nesta reforma. Não tiveram eco, portanto, entre nós, as discussões doutrinárias que assolaram a doutrina germânica sobre a exigência ou não de permissões legislativas específicas para a celebração de contratos públicos (no caso do ordenamento jurídico alemão), sendo nesse ordenamento jurídico maioritária a posição que exige as permissões legislativas específicas para a celebração dos contratos públicos.

5. Quarto aspecto e no que toca à temática dos procedimentos pré-contratual, três pontos merecem desenvolvimento.

Primeiro, relativamente à formação dos contratos cujo objecto abranja prestações que estejam, ou sejam susceptíveis de estar, submetidas à concorrência de mercado, encontra-se sujeita ao regime estabelecido no Código dos Contratos Públicos ou em lei especial. Tal disposição levanta uma dificuldade - é intenção do legislador aplicar o regime do CCP aos contratos que o CCP excluiu expressamente do seu âmbito de aplicação? Trata-se de aspecto que conviria o Projecto de CPA clarificar, por implicar uma eventual antinomia sistemática.

Segundo, o n.º 3 do artigo 199.º deve ser lido em função do n.º 1. O n.º 3 estabelece que, na ausência de lei própria, aplica-se à formação dos contratos administrativos o regime geral do procedimento administrativo estatuído pelo presente Código com as necessárias adaptações. Ocorre que o CPA só previa essa aplicação aos casos em que os bens não fossem escassos. No entanto, sempre que os bens a adjudicar fossem escassos entendia a doutrina que se aplicava um regime concorrencial. Não parece que seja intenção do novo projecto de CPA restringir a aplicação de regimes concorrenciais aos contratos relativos a bens susceptíveis de ser submetidos à concorrência. O CPA previa, é certo, no seu artigo 181.º o seguinte: “são aplicáves à formação dos contratos administrativos, com as necessárias adaptações, as disposições deste Código relativas ao procedimento administrativo”, redacção, portanto, similar à actual. Contudo, os artigos seguintes excepcionavam essa regra para os procedimentos pré-contratuais relativos a um série de matérias. O artigo 182.º, n.º 1, do CPA dispunha que “salvo o disposto em legislação especial, nos contratos que visem associar um particular ao desempenho regular de atribuições administrativas o co-contratante deve ser escolhido por uma das seguintes formas: a) concurso público, b) concurso limitado por prévia qualificação; c) concurso limitado sem apresentação de candidaturas; d) negociação, com ou sem publicação de anúncio; e) ajuste directo.”, mas logo o artigo 183.º dispunha que “com ressalva do disposto nas normas que regulam a realização de despesas públicas ou em legislação especial, os contratos administrativos devem ser precedidos de concurso público.” Pelo que a regra acabava por ser o concurso público, salvo quando o Regime de Realização das Despesas Públicas isentasse a celebração dos contratos desse procedimento em função do valor ou de critérios materiais. Tal só assim não acontecia quanto aos contratos de atribuição, desde que os direitos a atribuir não correspondessem a bens escassos (assim Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos).

Por esta razão, e porque não se considera que neste ponto não é intenção do Projecto se afastar da regra do concurso público, sustenta-se que, como se adiantou, a leitura correcta do n.º 3 do artigo 199.º do Projecto deve ser feita em articulação com o n.º 1 do mesmo artigo, o que significa dizer aplicar o regime do Código dos Contratos Públicos a todos os contratos cujo objecto abranja prestações que estejam, ou sejam susceptíveis de estar, submetidas à concorrência de mercado, ou seja, o n.º 1 do referido artigo não se limita a salvaguardar a aplicação do Código dos Contratos Públicos e de legislação especial que preveja exigências concursais, mas estende o âmbito de aplicação do Código dos Contratos Públicos a todos os contratos submetidos à concorrência de mercado. Trata-se a nosso ver de interpretação conforme às exigências do princípio da concorrência, tal como gizado na Constituição e às exigências decorrentes do Direito da União Europeia, mesmo se a solução apresenta algumas dificuldades suscitadas pela redacção do preceito.

Terceiro, o já referido artigo 199.º, n.º 2, do Projecto de Revisão do Código de Procedimento Administrativo refere apenas que “à formação dos contratos a que se refere o número anterior são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência”. Esta menção, que já advém do Código dos Contratos Públicos, poderia, salvo melhor, ser complementada por alguns de outros princípios particularmente relevantes em matéria de contratação, como seja o da proporcionalidade e do reconhecimento mútuo, o da não discriminação e da imparcialidade, o do formalismo e do favor do procedimento.

6. Por último, quinto aspecto a mencionar, e no que toca ao regime substantivo do contratos administrativos, o artigo 200.º do Projecto de Revisão do Código de Procedimento Administrativo prevê no seu n.º 1 que “as relações contratuais administrativas são regidas pelo Código dos Contratos Públicos ou por lei especial sem prejuízo da aplicação subsidiária daquele quando os tipos dos contratos não afastem as razões justificativas da disciplina em causa.” Esta norma suscita três dificuldades de aplicação.

Primeira, quererá o legislador aplicar subsidiariamente o Código dos Contratos Públicos não apenas aos tipos contratuais aos quais este não é aplicável, mas também aos tipos contratuais que este expressamente afastou do seu âmbito de aplicação, v.g. no artigo 5.º do referido Código)? A resposta a nosso ver é positiva, pretende-se a aplicação subsidiária do CCP a contratos expressamente afastados pelo artigo 5.º do âmbito de aplicação, salvo quando os tipos dos contratos afastem as razões da disciplina em causa.

Segunda, a eventual aplicação da disciplina do Código dos Contratos Públicos aos contratos a que por razões temporais este não é aplicável, v.g. aos contratos cujo procedimento de formação se iniciou antes da entrada em vigor do Código dos Contratos Públicos. A norma relativa à aplicação da lei no tempo constante do Projecto de Revisão do Código de Procedimento Administrativo não resolveu a questão. Tendemos a considerar que tal aplicação deve ter lugar, mas filtrada pelo crivo do artigo 12.º do Código Civil, isto é, salvo quando a lei nova não abstraia do facto que deu origem à relação jurídica (pense-se por exemplo na aplicação do regime do sequestro a contratos que não o prevejam).

Terceira dificuldade tem que ver com o âmbito de aplicação do Código de Procedimento Administrativo. Haverá contratos absolutamente idênticos em termos de tipo normativo a que se aplicará subsidiariamente o Código de Procedimento Administrativo e outros aos relativamente aos quais não se aplicará, isto em função da entidade que o celebra, dado que o Projecto de Revisão do Código de Procedimento Administrativo apenas prevê a sua aplicação aos órgãos do Estado e das Regiões autónomas, dos institutos públicos e das associações e das federações de direito público.

Por outro lado, o n.º 3 do mesmo artigo determina que as disposições deste Código respeitantes aos princípios gerais ao procedimento e à actividade administrativa aplicam-se à conduta de quaisquer entidades quando, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes administrativos de autoridade. Ocorre que é duvidoso que a celebração de contratos administrativos corresponda a exercício de poderes de autoridade, sempre que se trate de contratos de administração paritária, ou em que, por natureza, estejam excluídos poderes de autoridade (como indicia actualmente o Código dos Contratos Públicos uma vez que este se aplica a todas as entidades adjudicantes desde que “independentemente da sua natureza pública ou privada celebrem contratos no exercício de funções materialmente administrativas” (artigo 3.º, n.º 2 do Código dos Contratos Públicos), ou seja, mesmo a situações em que não esteja em causa o exercício de poderes de autoridade, desde que se trate do exercício da função administrativa, e como indicia o 302.º do mesmo Código, quando se ressalva dos poderes do contraente público as situações em que “outra coisa resultar da natureza do contrato (…)”). Podemos assim ter situações em que o Código dos Contratos Públicos seja aplicável por remissão e situações em que, relativamente a contratos de administração paritária, não seja aplicável, por estarem fora do âmbito de aplicação do Código de Procedimento Administrativo, numa dualidade que pode ser de difícil justificação.